sabe aquela coisa na qual você era muito bom? aquela coisa que te tornava um “pequeno prodígio”. algo que se perdeu tragicamente com o passar dos anos e não criou raízes fundas o bastante para construir uma estrada na sua vida. você se sente vazio, de alguma forma, com algo ali faltando. mesmo que seja um buraquinho bem pequeno na sua alma, ainda é algo que falta. algo invisível que você sente desaparecido. uma coisa que morreu e se perdeu, e você não foi capaz de fazer nada para mudar isso.
foi efêmero.
belo, transitório e passageiro.
mas ainda está em você, aí dentro. é aquela faísca. aquela vela faiscante que brilha calor para todo lado. ela acende toda vez que você ama; solta resquícios de fumaça quando você ameaça voltar a amar. é quase automático. um instinto primitivo que está em nós, guardado, mas que em algum momento vai escapar sem querer.
eu costumava desenhar quando criança. desenhos bons de verdade. costumava imitar personagens na internet e repassá-los para os meus cadernos de desenho. meu primeiro desenho digno de admiração foi aos 4/5 anos, era um homem torto e colorido, mas minha mãe foi a primeira a ver que tinha algo ali, algo especial, digno de apreciação. ela colocou o desenho como papel de parede do computador dela. pra mim aquilo foi especial, o começo de tudo. o puxão na minha corda interna que me guiava a algum lugar. e foi o bastante, ela viu algo em mim que existia e só tenderia a crescer. então, de repente, era só o que eu sabia fazer. desenho aqui, desenho acolá. um sorriso de orgulho à direita e umas bajulações à esquerda. eu amava aquilo, os lápis de cor, os papéis em branco, o resultado final, as mil e uma oportunidades de criar algo com os dedos.
eu era muito novinha, mas já tinha algo só meu. algo que eu descobri sozinha.
mas como um bom e velho hobby destinado a se perder nos labirintos da vida, aquilo ficou para trás. desenhos não faziam mais parte de mim. mas você não se torna menos artista só porque você decidiu abandonar a sua arte. em algum momento ela sempre volta. de um jeito discreto na rua, em como você enxerga o mundo, como escuta os sons ao redor. você vê algo lá fora e pensa: “cara, eu fazia isso. e se eu voltasse a fazer também?”. são pequenos cutucões na alma. aquela faísca querendo voltar a brilhar novamente. contudo, sendo o tolo descrente que é, você a assopra. a reprime em um lugar sem ar ou luz; sem qualquer estímulo ou chance de escapar.
mas ao longo dos anos, minha mente encontrou outras formas de despejar o que eu havia reprimido. quando eu brincava de boneca com minha prima, nunca eram brincadeiras comuns. cada uma delas tinha uma história, um enredo. e cada vez que brincávamos, estávamos em um episódio de uma série. tinha até um nome (não me lembro agora). cada vez que eu e minha prima nos encontrávamos, passávamos o dia inteiro brincando, criando mundos, desenrolares e finais alternativos. minhas notas eram cheias de ideias de como seriam as próximas brincadeiras, com roteiros sempre prontos para nossos futuros encontros. e eu não percebia, mas aquilo já era a faísca, queimando a todo vapor dentro de mim, me guiando a uma única direção.
então, aos 13 anos, escrevi meu primeiro livro. levou seis meses para ficar pronto. (era um completo horror). cheio de erros de ortografia e furos na história. mas era o começo de tudo. o começo para o que sou agora, o que me torna eu. no fim, aquela faísca era muito sorrateira, me acompanhava desde sempre, só esperava o momento certo para escapar do meu peito e se tornar real.
hoje, não consigo me imaginar não escrevendo. não consigo me imaginar não sendo uma escritora. um futuro sem isso é um futuro vazio e sem significado.
abandonar a faísca é como assassinar a criança interna que vive dentro de você. matar essa faísca é como dar um fim a todas as possíveis possibilidades de um futuro puro e genuíno.
só que… ao longo dos últimos meses, anda sendo difícil encontrar essa criança interior. é como se estivéssemos distantes demais. como se a conexão que nos ligasse houvesse sido cortada. anda sendo complicado escutá-la, ouvir o que ela quer, como quer e quando quer.
ultimamente, sinto que meu copo sempre cheio e transbordante está desastrosamente vazio. como se todo o meu talento, meu potencial, o que fazia parte de mim, tivesse sido eternamente despejado em algo e agora não me restou mais nada. teria eu desperdiçado tudo o que sobrava da minha água em um poço errado? tem alguma coisa em mim ainda? algo que restou? ou talvez eu seja apenas um copo quase seco, com só uma gota brincando de aparecer e ameaçando secar.
eu ligo a torneira, e às vezes sai água o bastante para encher meu copo até a metade. mas não é o bastante, não é a água que eu costumava conhecer. logo o copo está seco de novo, e eu volto à estaca zero, cheia de sede.
minha vela continua ali, esperando por alguma coisa. não consigo encontrar algo que a ilumine por tempo o bastante. vento sempre entra pela fresta da minha janela e a apaga. dessa vez, sinto que a faísca me traiu. sinto que me abandonou. me falta um isqueiro. uma gasolina. algo que queime a minha floresta. quero minha faísca de volta. o que aconteceu com ela? eu a negligenciei? eu a deixei escapar? sem querer eu teria a mandado embora? soprado com tanta força que jamais haveria possibilidade de voltar?
alguém deve tê-la roubado de mim. talvez meu pai quando ele morreu ― esqueçam que eu disse isso, apelei feio agora.
onde ela está? onde está minha faísca? EU QUERO ELA DE VOLTA!
ela não é efêmera. eu espero. eu rezo. mas e se for? e se o que somos, e se o que nos forma apenas desaparece um dia? e se nós, se eu, apenas não for boa o bastante para ela agora? talvez eu tenha crescido tanto que aquele pedaço em mim tenha se tornado pequeno demais. talvez agora quase não dê para o ver.
a escrita que habitava em mim, as palavras e frases ambulantes, correram para longe. não consigo alcançá-las. então eu olho para o que fiz, o que tentei fazer, e soa raso. soa errado. soa como um eco sem resposta. me sinto imprestável. irreal. não sou eu escrevendo, as palavras não estão falando comigo. grito com elas, mas não vem nada de volta. então fico frustrada, com medo, irritada comigo mesma. fecho a tela do computador, coloco minha vela de lado e tento dar um tempo para ela, fingir que não existe. não sei se sou eu quem está com raiva dela ou ela quem está com raiva de mim. não sei bem. não parecemos nos suportar mais. não parecemos mais ser amigas. eu falo comigo mesma, mas não encontro respostas.
será que preciso de tempo? quanto tempo então?
me disseram que preciso me afastar, respirar um pouco. mas e se eu esperar por tanto tempo que acabe sendo tarde demais?
e se eu nunca mais voltar a ser quem eu era antes? sinto falta de mim. eu me quero de volta. por onde eu estou?
espero que depois de admitir tudo isso, de alguma forma, minha vela faiscante volte a faiscar.
“um futuro sem isso é vazio” e assustador
como você mesma disse, em algum momento a sua arte sempre volta. temos essas ausências, mas nunca uma perda. não se pode tirar algo que já faz parte de nossos ossos. a escrita sempre será sua, minha e de todos que se encontrarem com ela. as palavras possuem a quem as escrever e a quem as escutar e ler. lindo texto, heleninha, amo você e a sua escrita 🤍